- SEGUNDO CHOGYAM TRUNGPA,AUTOR DO LIVRO SHAMBHALA : A TRILHA
SAGRADA DO GUERREIRO
A Descoberta da Bondade
Fundamental
No livro Shambhala: a trilha
sagrada do guerreiro, Chögyam Trungpa nos conta que o caminho para a auto-estima
e o apreço ao mundo passa pela meditação. Confira um trecho do livro a seguir:
Grande parte do caos que existe
no mundo deve-se ao fato de que as pessoas não se auto-valorizam. Como jamais
desenvolveram o sentimento de benevolência ou empatia por si mesmas, não
conseguem experimentar o sentimento de paz ou harmonia interior, e por isso o
que projectam para os demais é igualmente desarmónico e confuso.
Em vez de valorizarmos a vida, frequentemente
julgamos nossa existência como algo garantido, algo que não exige maiores
preocupações, ou a consideramos um fardo pesado e deprimente. Há pessoas que
ameaçam suicidar-se porque não estão recebendo da vida o que acreditam merecer.
Algumas transformam a ameaça de suicídio em chantagem, dizendo que se matarão
se certas coisas não mudarem.
É preciso levar a vida a sério,
sem dúvida, mas isso não significa exasperar-se, chegar à beira da crise
queixando-se dos problemas e alimentando rancor contra o mundo. Temos de
aceitar a responsabilidade pessoal pela elevação de nossas vidas.
Quando uma pessoa não se condena,
quando não se inflige punições, quando relaxa um pouco mais e valoriza seu
corpo e sua mente, ela começa a ter contacto com a noção básica de bondade
fundamental existente nela.
Por isso é extremamente
importante a disposição para abrir-se a si mesmo. Cultivar ternura por nós
mesmos permite-nos enxergar com clareza tanto os nossos problemas como as
nossas potencialidades; não nos sentimos compelidos nem a fechar os olhos aos
problemas, nem a exagerar nosso potencial. Esse tipo de carinho e auto-estima é
indispensável. É o ponto de partida para nos ajudarmos e ajudarmos aos outros.
Como seres humanos, possuímos uma
base de trabalho que nos permite elevar nossa condição existencial e nos tornar
plenamente animados. Essa base de trabalho está sempre ao nosso alcance. Temos
a mente e o corpo, e eles nos são muito preciosos.
É por termos a mente e o corpo
que somos capazes de compreender o mundo. A existência é maravilhosa, é algo
precioso. Nenhum de nós sabe por quanto tempo viverá. Logo, enquanto estamos
vivos, por que não usar a vida? Mais ainda, antes de usá-la, por que não lhe
dar valor?
Como descobrir essa forma de
apreço?
Desejá-la na imaginação ou simplesmente falar sobre o assunto não
ajuda. Na tradição de Shambhala, a disciplina para desenvolver tanto a auto-estima
como o apreço pelo mundo é a prática de sentar-se em meditação. A prática da
meditação foi ensinada pelo Buda há mais de 2.500 anos e desde então faz parte
da tradição de Shambhala.
Está baseada numa tradição oral:
desde a época do Buda essa prática vem sendo transmitida de um ser humano a
outro. Assim, manteve-se como tradição viva, de modo que, embora seja uma
prática antiquíssima, continua actual. Neste capítulo vamos abordar com algum
detalhamento a prática da meditação, mas é importante lembrar que, para
compreendê-la plenamente, é preciso receber orientação directa e
individualizada.
Por meditação, entendemos aqui
algo básico e muito simples, não vinculado a nenhuma cultura em particular.
Estamos falando de um ato simplesmente fundamental: sentar no chão, adoptar uma
boa postura e cultivar o sentimento de termos um espaço próprio, de termos
nosso lugar na terra.
Esse é o meio de nos
redescobrirmos e de redescobrirmos nossa bondade fundamental, o meio de
entrarmos em sintonia com a genuína realidade, sem nenhuma expectativa, sem
nenhum preconceito.
Às vezes a palavra meditação é
empregada para designar a contemplação de determinado tema ou objecto:
medita-se sobre isto ou aquilo. Meditando-se sobre uma questão ou sobre um
problema, pode-se achar a solução para eles. A palavra também está ligada à
busca de uma condição mental superior, através de algum tipo de estado de
transe ou absorção.
Mas aqui nós falamos de um
conceito de meditação completamente diferente: a meditação incondicional, sem
nenhum objecto ou ideia fixados na mente. Na tradição de Shambhala meditar é
simplesmente treinar nosso ser para que a mente e o corpo possam estar
sincronizados. Através da prática da meditação podemos aprender a ser
absolutamente autênticos, sem dissimulação: podemos aprender a viver
plenamente.
A vida é uma viagem sem ponto
final; é uma grande rodovia que se estende infinitamente no horizonte. A
prática da meditação fornece-nos um veículo para percorrer essa estrada. A
viagem está cheia de altos e baixos, de esperança e medo, mas é uma boa
jornada. A prática da meditação permite-nos vivenciar todas as texturas da estrada,
e é justamente nisso que consiste a viagem.
Com a prática da meditação
começamos a descobrir que, afinal de contas, não há em nós nenhum motivo
fundamental para nos queixarmos de coisa alguma.
Damos início à prática da
meditação sentando-nos no chão com as pernas cruzadas. Simplesmente pelo fato
de permanecermos ali, no instante presente, começamos a sentir que podemos
moldar nossa vida e até torná-la maravilhosa. Percebemo-nos capazes de sentar
como rei ou rainha num trono. A majestade dessa situação revela-nos a dignidade
que há em sermos tranquilos e simples.
Na prática da meditação uma
postura recta é extremamente importante. Manter as costas erectas não é uma
postura artificial. É a posição natural do corpo humano. O estranho é
justamente o contrário. Uma postura descuidada, com ombros caídos e costas
recurvas, impede-nos de respirar de forma adequada, além de ser um indício de
que estamos começando a ceder à neurose.
Assim, ao sentarmos erectos
estamos proclamando — a nós mesmos e ao resto do mundo — nossa disposição para
nos tornarmos guerreiros, seres plenamente humanos.
Para ter as costas erectas não é
necessário fazer força e obrigar os ombros a se levantarem; a postura erguida
vem naturalmente do ato de sentar com simplicidade, mas também com altivez, no
chão ou numa almofada própria para meditar. Logo, se as costas estão rectas,
não sentimos nenhum vestígio de timidez ou constrangimento, e assim não há por
que abaixarmos a cabeça.
Não estamos nos curvando a nada.
Por isso os ombros automaticamente se endireitam, e nossa percepção da cabeça e
dos ombros começa a ficar mais aguçada. Podemos agora deixar que as pernas
repousem naturalmente na posição cruzada; não é necessário que os joelhos
toquem o chão. Completamos a postura apoiando levemente as palmas das mãos
sobre as coxas, o que nos dá uma sensação ainda maior de estarmos assumindo de
maneira adequada o nosso lugar.
Nessa postura o olhar não se
perde em passeios a esmo. Temos a sensação plena de estarmos ali e não em outro
lugar. Os olhos permanecem abertos, mas o olhar se inclina ligeiramente e
estanca a cerca de dois metros diante de nós. Não vagueia de um lado para o
outro, o que fortalece a sensação de algo deliberado e bem-definido.
Essa postura real pode ser
encontrada em posturas egípcias e sul-americanas, assim como em estátuas
orientais. Trata-se de uma postura universal, não específica de nenhuma cultura
ou época.
No dia-a-dia também devemos estar
atentos à postura, à posição dos ombros e da cabeça, ao modo de andar, de olhar
para as pessoas. Mesmo quando não estamos meditando podemos dignificar nossa
existência. Podemos superar o constrangimento e ter orgulho de sermos seres
humanos. Esse orgulho é aceitável e bom.
Assim, na prática da meditação,
sentando-nos com uma boa postura ficamos atentos à respiração. Ao respirar,
estamos inteiramente ali, verdadeiramente ali. Com a expiração nós saímos de
nós mesmos, nosso fôlego se dissolve e logo em seguida a inspiração
naturalmente acontece. Então saímos outra vez. Ocorre assim um constante “ir
embora” com a expiração.
Ao expirar nós nos dissolvemos,
nos difundimos. Logo depois a inspiração se produz, naturalmente; não
precisamos tomar conta. Simplesmente voltamos à postura — e estamos prontos
para mais uma expiração. Sair e dissolver-se: chuuu…; em seguida, voltar à
postura; logo depois, chuuu…, e voltar à postura.
Haverá então um inevitável
clique! — um pensamento. Nesse instante nós dizemos: “Pensando”. Dizemos
mentalmente, não em voz alta: “Pensando”. Rotular assim os pensamentos é uma
poderosa alavanca para retornarmos à respiração. Quando um pensamento nos
afasta por completo do que estamos realmente fazendo — quando já não percebemos
que estamos sentados numa almofada, mas nos vemos em Nova York ou San Francisco
—, nós dizemos: “Pensando“, e assim nos trazemos de volta à respiração.
O tipo de pensamento na verdade
não faz diferença. Na prática da meditação sentada todos os pensamentos, sejam
eles escabrosos ou benfazejos, são vistos simplesmente como pensamentos. Não
são nem virtuosos nem pecaminosos. Pode-se pensar em assassinar o próprio pai
ou ter vontade de fazer uma limonada e comer biscoitos.
Por favor, não nos escandalizemos
com nenhum pensamento que tivermos: qualquer pensamento é apenas pensamento.
Nenhum deles merece nem uma medalha de ouro nem uma repreensão. Limitemo-nos a
aplicar-lhes o rótulo — “Pensando” — e voltemos à respiração. “Pensando”, e
voltemos à respiração.
A prática da meditação é muito
precisa. Deve acertar exactamente no alvo. É um trabalho bastante árduo; porém,
se nos lembrarmos da importância da postura, isso levará à sincronização entre
a mente e o corpo. Sem uma boa postura, a prática será semelhante ao esforço de
um cavalo manco para puxar uma carroça: nunca funcionará. Assim, primeiro é
preciso sentar e assumir uma boa postura.
Em seguida, tem início o trabalho
com a respiração: chuuu…, sair, voltar à postura; chuu…, voltar à postura;
chuuu… Quando surge um pensamento, nós lhe aplicamos o rótulo — “Pensando” — e
voltamos à postura, voltamos à respiração. A mente trabalha em conjunto com a
respiração, mas o corpo se mantém sempre como ponto de referência. Não
trabalhamos apenas com a mente. Trabalhamos com a mente e o corpo, e quando
ambos trabalham juntos, nunca abandonamos a realidade.
O estado ideal de tranquilidade
provém da vivência da sincronização entre o corpo e a mente. Se o corpo e a
mente não estão sincronizados, o corpo perde vigor… e a mente se perde por um
caminho qualquer. É como um tambor malfeito: o couro não está ajustado à
armação, logo, ou a armação se quebrará ou o couro acabará cedendo. A tensão
entre eles nunca se mantém constante.
Quando a mente e o corpo estão
sincronizados, então, graças à boa postura, a respiração se produz
naturalmente. E como a respiração e a postura trabalham juntas, a mente dispõe
de um ponto de referência para orientar-se. Como consequência, a mente pode
sair naturalmente com a exalação.
Esse método de sincronização
entre a mente e o corpo nos ensina a ser muito simples e a sentir que não somos
nada especiais — somos seres comuns, extraordinariamente comuns. Nós apenas nos
sentamos, como guerreiros, e desse ato nasce um senso de dignidade pessoal.
Estamos sentados na terra — e percebemos que essa terra nos merece e que nós
merecemos essa terra.
Estamos aqui — pessoalmente, com
plenitude e autenticidade. Na tradição de Shambhala, portanto, a prática da
meditação é indicada para educar as pessoas a serem honestas e autênticas,
fiéis a si mesmas.
Em certo sentido, deveríamos ter
a sensação de carregar um grande fardo: o fardo de ajudar o mundo. Não podemos
nos esquivar a essa responsabilidade para com os outros. Porém, se assumimos
esse fardo como um prazer, podemos realmente liberar o mundo.
O meio é este: começar por nós
mesmos. Sendo abertos e honestos em relação a nós mesmos, podemos aprender a
ser abertos também para com os outros. Desse modo, partindo da bondade que
descobrimos em nós, podemos trabalhar com o resto do mundo. Por esse motivo, a
prática da meditação é vista como um bom meio — aliás, um excelente meio — de
vencer a guerra no mundo: nossa guerra pessoal e as guerras em maior escala.
Chögyam Trungpa, Shambhala: a
trilha sagrada do guerreiro.
Tradução de Denise Pegorim.
Supervisão técnica e notas de Lincoln Berkley.
São Paulo: Cultrix, s.d., p.
37-44. Copyright 1984 by Chögyam Trungpa.
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