quarta-feira, abril 23, 2008

desabafos...

Caminhar pelos dias compenetrado em teu semelhante origina vários dissabores, acerca das misérias, das dificuldades alheias. Atento, em maior sintonização com as origens das reflexões, é razoável sentir-se emocionado. Difícil é, estejam conscientes ou não, alhearmo-nos destas dores alheias. Exemplos do dia: rua no centro da cidade do Porto. Rua antiga e suja. De passagem chama-me à atenção exuberante e como se indefesa entre as feras, uma jovem de raça negra, lindíssima. Uma adolescente ainda, menor com certeza. Ali, no cinzento frio e escuro da rua, à mercê dos predadores, numa esquina prostituindo-se. Encontro seus olhos, expressivos e grandes, numa angustia como que a ornamentar um corpo perfeito, lindo e exposto aos transeuntes da cidade implacável, estranha e fria. Esta criança roubada, com o corpo em flor à mercê de quem passa. Cruzar de passagem com ela, encontrar de raspão o seu olhar, ler-lhe sua inocência estuprada, todo pânico contido num amanhã sem futuro, entristeceu-me a alma para além do meu domínio. Maldição, como é possível que tanto sofrimento assim revestido em consumível possa ser desejável. Segundo acontecimento: Hora do almoço. Uma senhora cega almoça só, defronte a mim. Com movimentos calmos e compassados, sem os sobressaltos característicos de quem usufrui da visão, conduz seus alimentos à boca. Bebe do seu copo, que previamente enche sem falhar, talvez uma ou duas gotas derrame, mas num ritmo certo e seguro, bebe saboreando do copo que leva aos lábios, numa calma tão intensa e contida, capaz até de desacelerar o próprio ambiente em seu redor. De um ser humano que apressamos em julgar às escuras eis que surge luz para o mundo. Como é que uma mulher privada da sua visão, ilumina assim, o espaço em seu redor… Uma vez mais, agora por motivos diferentes, me comovo sem mostrar com o desempenho que cada um representa, à razão deste sentir. Andamos muitas vezes, apenas semi-acordados em nossa escuridão a que chamamos de vida, egocêntricos em nossos assuntos esquecemos o mundo e a luz que para nós reflecte. Tantas vezes naquilo que desprezamos por receio de que vá desmoronar o gelo do iceberg da nossa indiferença, fria, surda e manipuladora. Oxalá um dia, possamos deixar de ser manipuladores, antes de encontrar a Deus.

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