segunda-feira, abril 23, 2007

Ronda de 22 de Abril 2007

22:15 Com a equipe reforçada pela presença do Fernando, depois de termos cumprido a preparação dos sacos saímos para a rua. Avenida da Boavista, o Hélder andava sem frio. Completamente trémulo, sumo na mão a cambalear entre os carros que passavam como quem desafia um acordar violento ou um adormecer súbito, com o que lhe resta de voz das suas cordas vocais meias desfeitas pelas injecções de droga no pescoço lá nos saudava com expressão ausente. Júlio Dinis, era já tarde. Nem uma alma só. São Bento. O centro da cidade do Porto. Uma multidão, cerca de 100 pessoas dificilmente contidas numa fila que junto a um dos três carros que partiram para esta ronda, avidamente esperavam a sua vez para receber um saco. Fiquei com a missão de retirar junto com o Bernardo os sacos do carro. Como temos que fitar bem o rosto da pessoa a quem entregamos o saco, para evitar que o venha pedir duas vezes e com isso penalizar quem não recebeu, acabei por literalmente me chocar com intensidade com esta talvez centena de olhares. É deveras chocante, embater com tipos de necessidades tão diferentes de uma assentada só. Mas ainda assim são deste os que se infiltram sem necessidades especiais, os que mais me custam a “digerir”.
Refiro-me ao olhar de alguém sem necessidade, sem fome, com plena consciência que está a receber algo que a alguém com uma real necessidade vai fazer falta, que confirmo na sua expressão, no olhar, que está em confronto com a sua consciência que lá dentro se revolta e ainda assim, com o olhar de que rouba um pacote de chicletes no supermercado, estende a mão para receber um saco, com um pacote de sumo, um de leite, uma lata de salsichas, um pão um doce e um salgado. De entre todas as misérias que ofendem os sentidos, esta é a mais difícil de superar. É o jovem equipado à FPC, que chegou do jogo ainda meio eufórico, a buscar um saco destinado aos pobres e necessitados e deve ter pago umas notas de euro para entrar no jogo, se calhar deixou em casa a sua jovem família sem nada para comer…
É a miséria mais terrível… a miséria da inconsciência. A auto infligida. A nossa sociedade está infectada terrivelmente desta miséria que fere o coração e que é difícil de ser combatida. É os jovens vestidos à punk num adereço que nem fica barato, a ver se lhes sai um saco. É a falta de solidariedade entre a pessoa que se comporta desta forma, que é mais chocante. Mas é aqui também que se aprendem grandes lições, para mim a mais importante nesta ronda foi que um sem abrigo de verdade não se mistura muito com outras pessoas. Geralmente é recatado, educado e simples, ferido de verdade se assim se pode afirmar. Quanto mais difícil a sua personalidade menos se mistura com alguém. O sem abrigo de verdade, vive ou viveu de alguma forma uma experiência que o condicionou a um isolamento social. É muitas vezes caracterizado inclusive pela dificuldade em se comunicar. Bem no centro do Porto na nossa velha cidade, o maior problema passou a ser mais assistência social que sem abrigo. É gente, muita gente que necessita ser reeducada, no sentido de rever as suas prioridades na vida, de forma a conservarem as coisas mais importantes em primeiro lugar. A dignidade humana e o bom senso, sobretudo. A Ronda dos Sem Abrigo, vai repensar esta paragem e muito certamente trocá-la por outras a sua acção seja mais frutuosa. Daqui fomos à rua escura e o contraste aconteceu de imediato, na escuridão duma rua apertada e antiga, entre os traficantes que davam alertas da nossa chegada para que não nos fizessem dano, cada um dos sacos que demos foi recebido com uma gratidão sincera e entre tanta miséria de verdade não existe espaço ao fingimento. Como é estranho para mim, confirmar que se encontra mais luz num lugar escuro, pobre mas mais honesto, que num lugar cheio de luz, movimento e gente, onde a desumanidade acaba mesmo por ser maior, como em São Bento. Junto à Sé do Porto, estivemos com um casal de velhinhos, sós e juntos há muitos anos, numa pobreza e solidão enorme, me tocaram profundamente. Com uma dignidade e uma mansidão só encontrada em almas muito grandes, o espírito dos saudosos avós esteve ali presente. E ao deixá-los enquanto nos despedíamos até a uma próxima vez, nos seus olhos abandonados pela cidade que os viu nascer, sentia eu já a angustia da saudade que me causava deixá-los ali, naquela noite quais guardiães duma Sé antiga de outros Portos. Também foi a ronda dos arrumadores de carros esta ronda. Acho que se juntaram todos cada um em seu “posto de trabalho”, numa fome que já não via algum tempo. Também aqui fomos alvo duma educação que não se vê muito por parte destes jovens. Muito agradecidos, não escondiam a satisfação de alguma coisa para enganar o estômago. Rua 31 de Janeiro, entrada de um prédio sujo mesmo junto ao passeio, debaixo de um cartão que normalmente serve de colchão, sobressai a carne branca de umas coxas e ao reparar no movimento para cima e para baixo que o cartão fazia, apressamo-nos a sair dali não fossemos interromper algo importante. Rua de Camões. Esta é sobretudo uma zona onde algumas prostitutas e homossexuais passam das conhecidas casas com reputação na cidade do porto frequentadas por gente da sociedade portuense, para a rua. Quando o corpo se degrada no consumo de uma vida que nunca se conseguiu dominar, sem as boas graças dos patrocínios é na rua que se acaba doente e enfermo, esquecido e abandonado.
Também aqui cada vez mais aparece o oportunista. Aliás com a difícil conjectura económica que todos sabemos em nosso pais, cada vez mais pessoas aderem ás refeições de movimentos como o nosso, para poupar algum do dinheiro que vão necessitar para os telemóveis da próxima geração que irão querer comprar quando saírem…. Dali rumamos em direcção ao Santo António, que sem alongar muito, poderia de nomear o acontecimento de São Bento versão II, ainda mais desolador. Também aqui terá que se reavaliar a acção da RSA. Por fim, lá fomos ao Aleixo. Já estava a Bruna com sua cadeirinha de rodas “enfeitada com sacos de plástico”, com um cobertor velho e surrado a cobrir do frio da noite, só os dois totós do seu cabelo sujo de fora, encostada sozinha no passeio, com fome, com ainda mais sede. A Bruna tem paralisia nas pernas, é uma jovem rapariga lindíssima e amorosa. Seu frágil corpo já serviu muito para lhe sustentar o vício e em sua adolescência serviu a muitos que agora não a reconhecem. No Aleixo, entre os toxicodependentes, portadores de doenças infecto contagiosas muito desenvolvidas, falta de roupa, falta de higiene, falta de tudo, fico enternecido ao reparar como trocam naturalmente gestos de carinho, como trocam um pacote de bolachas ou uma peça de roupa sem inveja, como partilham o que tem para comer com alguém que chegou tarde, como se apressam sem espectáculo em sossegar uma dor, que tão bem conhecem em eles mesmos. Á luz do que me foi ensinado sobre os ensinamentos de Cristo, não estarão alguns destes desabrigados do Aleixo, com suas vidas conturbadas e dominadas pelo vicio, mais próximos de Deus que aquele que vai oferecer o Domingo à Igreja? È que uns dão até o que não tem apesar de não serem um exemplo para a comunidade, enquanto outros no seu exemplo limpo e casto, nunca se aproximaram nem na metade da porção do que poderiam dar. Que pensará, aquele que tudo vê? Quem destes, despidos das aparências dá mais? Fico sempre com a ideia, que detrás de uma multidão tem sempre o risco de arruaça.

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