Qual seria o destino de toda aquela gente? As oficinas do campo de Auschwitz haviam sido fechadas. Também o barracão trinta e um, com suas quase quinhentas crianças.
O que se haveria de esperar agora? Falava-se de uma selecção que os temidos oficiais da SS realizariam. Dita estava cansada. A esperança parecia fugir de sua alma adolescente como areia fina entre dedos entreabertos.
Seu pai morrera, vítima dos trabalhos forçados, de fome e de enfermidade. Nenhum medicamento lhe fora providenciado, quando a febre começara a devorá-lo e a pneumonia lhe destroçara os pulmões.
Ela nem pudera estar perto dele para assistir seus últimos momentos. Seu corpo fora se juntar ao de tantos outros, que morriam, diariamente, no campo de extermínio.
Sua mãe parecia um farrapo humano, com os ossos rasgando a pele, tal a magreza. Piolhos, pulgas, mau cheiro, fome, muita fome. Ela não aguentava mais.
Vamos rezar. – Convidou Margit, a amiga.
Rezar? Para quem? - Explodiu Dita.
Para quem mais poderia ser senão para Deus?
A raiva tomou conta de Dita. Há muito tempo tudo aquilo estava guardado dentro dela. Como um vulcão, ela expeliu a lava da sua amargura.
Centenas de milhares de judeus rezam a Deus, desde 1939. Ele não escutou ninguém.
Talvez não tenhamos rezado o suficiente, forte o bastante para que ele nos escute.
A amiga procurava os últimos fiapos de esperança, dentro de si, buscando apoio na companheira.
Ora, Margit. Deus sabe de tudo o que fazemos e não sabe que estão matando milhares de inocentes? Não sabe que outros milhares são mantidos como prisioneiros e tratados piores do que cães? Acha mesmo que Ele não sabe?
Embora a revolta que extravasava, Dita demonstrava que tinha certeza absoluta daquele Deus, cuja existência os pais lhe haviam ensinado.
Ele era omnipresente. Omnipotente. Por que não tomava uma atitude? Por que não fazia nada? Acaso os judeus não eram Seus filhos?
Não sei, foi a resposta de Margit. Sei que não se deve questionar Deus. Podemos ir para o inferno.
Não seja ingênua, Margit. Já estamos no inferno.
* * *
Ante as dores superlativas que nos visitam, por vezes, a desesperança nos abraça.
É que quando chega a madrugada, e as dificuldades do dia anterior voltam a nos assaltar, parece-nos que já não existe energia para fardo tão pesado.
É o momento do desespero. A oração parece perder sua força e seu poder.
Deus nos parece alguém distante e insensível. Alguém que talvez passeie pelos jardins do Éden, esquecido dos que padecem.
Jesus, na agonia da cruz, ante as dores que O dilaceravam, legou-nos o mais extraordinário ensino. Enquanto se debatiam os condenados, ao Seu lado, Ele orava ao Pai:
Senhor, concede o Teu perdão. Eles não sabem o que fazem.
Preocupava-se com os Seus irmãos.
E, sentindo se aproximar o momento da morte, rogou:
Senhor, em Tuas mãos entrego meu Espírito.
Nenhuma revolta. Nenhum desespero. Fortaleza na prece.
Aprendamos com o Modelo e Guia, porque, nesta Terra de tanta intranquilidade, tudo se finda.
Só o Espírito é eterno, indestrutível.
Pensemos nisso.
com base no cap. Julho de 1944, do livro A bibliotecária de Auschwitz, de Antonio G. Iturbe, ed. AGIR.
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